terça-feira, 22 de julho de 2008

Parque Nacional do Xingu - kuarup: alma indígena

Parque Nacional do Xingu - kuarup: alma indígena

Em julho de 2003 tive a felicidade de conhecer o Parque Nacional do Xingu e assistir ao Kuarup, uma reverência a seus mortos ilustres. Naquela oportunidade a homenagem era dedicada ao sertanista Orlando Villas Boas, grande guerreiro e defensor da causa indígena.

A predominância dos brancos foi grande e evidenciou o seu domínio sobre o indígena. Pude presenciar essa coisa ainda viva em nossa cultura, através de atitudes e concepções, traduzida em intromissão, no domínio, no ar de superioridade, na falta de respeito.

Mesmo com a intervenção constante do branco, busquei do fundo da minh’alma sentir e vivenciar o SER ÍNDIO, por meio de gestos, costumes, olhares e da expressão que tanto se faz presente e impressiona!

Não quero registrar apenas indignação, pois desde que iniciei meus escritos, jurei a mim mesma relatar o protesto sim, a evocação, o grito de insatisfação, de alerta; mas procurar evidenciar o belo, o etéreo, o sagrado; enfim, expressar a beleza da natureza seja qual for a forma como se apresente.

Com aquela gente – que nos faz lembrar nossa origem, que temos família, que fomos feitos para viver em harmonia – senti-me pequenina diante de suas grandezas, desde o gesto infantil até o respeito ao próximo, que estamos perdendo dia-a-dia.

Fiquei emocionada quando Killir, uma indiazinha meiga, companheira, linda, perguntou-me o nome dos meus pais (já não os tenho mais em vida). Senti que ainda há quem dê valor ao espírito de família e se importe com os outros.A companhia daquela indiazinha mexeu muito comigo.

Ficou tão perplexa por nossos atos, atitudes, comportamentos, modelos, costumes, exemplos e, de repente, fiz uma leitura de que não tinha o que ensinar, e sim muito a aprender com o povo indígena.

Eles se comportam de forma feliz, simples, inocente, natural e cativante - exemplo para nós. O viver, o simplesmente ser, em tudo que lhes diz respeito. A harmonia nos gestos, nos traços da cabana, nas cores exóticas, no preparo dos alimentos, no olhar e no relacionamento.

O diálogo entre os familiares ao deitar, ao acordar, soa como um compromisso à própria vida, à própria natureza harmônica e livre. A naturalidade na forma expressiva do ser, do fazer e do respeitar. O coração do cacique Aritana, ilustre líder indígena, enaltece a imensa maloca com seu aspecto soberano – simples, tão expressivo quanto sua sabedoria – seu dom de ouvir e acolher quem está “em seus braços”. Impressionante, louvável e porque não dizer, apaixonante! Seu olhar seguro, determinado, firme e grandioso carrega valores e transmite aulas vivas de sabedoria e aprendizagem de vida.

A submissão das mulheres lhes garante o direito de companheiras, protegidas e também guerreiras, pois cabe a cada uma o seu espaço, o seu trabalho e determinação.

O céu do Xingu, grandioso chão de estrelas reluzindo sobre os seres, piscando incansavelmente, faz-me acreditar que existe o céu na terra. Um banho de estrelas caindo em forma de véu, envolto numa cortina imensa, à qual apenas os abençoados por natureza têm acesso.

Senti falta da chuva, mas entendi sua ausência como um sinal de respeito. Naquele momento eu interpretaria sua presença como uma lágrima da mãe natureza em confronto com a maldade humana e preferi assim...Os rios, carregando a lembrança de sonhos de criança, de paz e esperança, ainda que sofridos, desgastados pelo assoreamento, oferecem o espírito de liberdade e me permitiram viver a sensação de céu, do divino, da natureza que eu só conhecia em sonhos.

A dança das gaivotas, nos acompanhando num sobe-e-desce sobre a voadeira, num entrecortar de asas, em harmonia perfeita, cantavam, revoavam e, num compasso exuberante, nos deixaram (uma poetisa, um artista plástico e um jornalista) fascinados. Ofereciam um espetáculo magnífico sem hora marcada, sem ingresso e sem ensaios.

O único passaporte exigido, naturalmente, foi a coragem de desafiar os costumes, o comodismo e o sedentarismo largados na sociedade “civilizada”. Ecoavam aos céus, às águas, aos seres um grito de liberdade, de viver e nos transmitiam uma mensagem de que ainda é possível sermos felizes.
Foi mais que uma viagem; foi um sonho, um reencontro às origens, um retorno à infância, um repensar do viver, do ser, enquanto fincados na evolução, no distanciamento da fraternidade em nome do avanço tecnológico.

Um encontro de vida, uma lição de amor, de bondade e sabedoria por uma gente a quem tanto devemos, e que hoje num gesto sublime de magnitude, resiste, ainda que com toda a intromissão do branco.

Eles perduram. Guerreiros d’alma, em plena vida. Gente com quem tanto precisamos aprender, reaprender a nos tornarmos mais gente!

Homenagem especial ao Aritana, líder da tribo indígena Yaualapiti.

Ana Suely Pinho Lopes (Brasília - DF)

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